quarta-feira, 25 de março de 2009

A IMPORTÂNCIA DE JOÃO BATISTA NA TRADIÇÃO SINÓTICA

Algum leitor que decidir se aventurar pelas páginas de qualquer dos evangelhos sinóticos vai se deparar, logo no início da sua empreitada, com a figura enigmática e exótica de João Batista. O fato de ser comum, aos três autores, a decisão de incluir, em seus livros, as tradições acerca deste profeta, que vivia no deserto pregando e mergulhando o povo no rio Jordão, nos desperta à percepção da considerável importância desse registro para os propósitos literários dos evangelistas. Qual a razão dessa importância?
Em primeiro lugar, a figura histórica de João Batista tornou-se bastante conhecida e estimada pela comunidade da Judéia que o reconhecia como um profeta autêntico (Mc 11: 32 par[1]). Este fato torna-se um motivo mais do que relevante para a escolha de Marcos por iniciar o seu evangelho com o ministério do Batista, identificando-o profeticamente como aquele que “prepararia o caminho” e “endireitaria as veredas” para a chegada do Senhor (Mc 1: 2, 3; cf. Ml 3: 1 e Is 40: 3). Se esse “Senhor” messiânico é Jesus, e é isto que Marcos quer evidenciar com sua obra[2], nada mais adequado do que mostrar para os seus leitores (a comunidade de cristãos em Roma) que as profecias do AT[3] estavam se cumprindo à risca, inclusive com o preâmbulo proporcionado pela ação da “voz do que clama no deserto”. Em outras palavras, ao identificar João profeticamente com o AT, consequentemente, também ficaria identificado o seu sucessor que, conforme a estrutura dos evangelhos, era Jesus.
Em segundo lugar, os autores percebem a figura de João como um elemento importante para introduzir uma temática teológica fundamental dos evangelhos: o reino de Deus[4]. Esse reino, segundo as convicções teológicas dos autores neo-testamentários, seria o governo de Deus sobre a terra, inaugurado com o ministério terreno de Jesus e estabelecido, na sua plenitude, com o evento da parousia, a segunda vinda escatológica de Jesus com o objetivo de julgar o mundo. Esse julgamento é chamado no AT de "o dia do Senhor". Contudo, era necessário o cumprimento de uma profecia para que esse reino viesse a efeito: “Eis que eu vos enviarei o profeta Elias, antes que venha o grande e terrível Dia do Senhor; ele converterá o coração dos pais aos filhos e o coração dos filhos a seus pais, para que eu não venha e fira a terra com maldição” Ml 4: 5, 6). Embora o próprio João não tivesse a compreensão de ser ele mesmo essa personificação de Elias, predita por Malaquias (cf. Jo 1: 21-23), a realidade desse fato é assegurada pelo testemunho do próprio Senhor Jesus (Mt 11: 14).
Outro motivo, que poderíamos listar em terceiro lugar, está relacionado com o batismo de Jesus. Segundo Marcos, João pregava “batismo de arrependimento para remissão de pecados” (Mc 1: 4). Mateus acrescenta, a essa pregação de arrependimento, a chegada iminentemente próxima do “reino dos céus” (Mt 3: 2). Quando o profeta do deserto fala em arrependimento, deve-se compreender que o mesmo está se referindo a algo muito mais profundo do que uma simples “mudança de mente”, conforme expressa o sentido etimológico imediato de metanoia. Arrependimento para João tinha o sentido vétero-testamentário de conversão. Voltar-se para Deus em novidade de vida e, consequentemente, desfrutar do perdão que o Senhor oferecia. O batismo de arrependimento tipificava esta experiência: “Então, aspergirei água pura sobre vós, e ficareis purificados; de todas as vossas imundícias e de todos os vossos ídolos vos purificarei. Dar-vos-ei coração novo e porei dentro de vós espírito novo; tirarei de vós o coração de pedra e vos darei coração de carne. Porei dentro de vós o meu Espírito e farei que andeis nos meus estatutos, guardeis os meus juízos e os observeis” (Ez 36: 25-27). Perceba que um arrependimento definitivo, implicando novidade de vida e incluindo, consequentemente, a observância da Lei do Senhor, só seria possível de fato a partir de um Espírito novo e um coração novo que seriam implantados nos homens. O batismo de João, conforme mencionado acima, apenas tipificava tudo isso, contudo, conforme sua prédica, chegaria alguém “mais poderoso do que ele” que realizaria esse batismo com o Espírito Santo (cf. Mc 1: 7, 8 par).
No meio daquela multidão que “confessando os seus pecados, eram batizados por ele no rio Jordão” (Mc 1: 5b) surge alguém que causa uma reação extremamente inusitada por parte do Batista: esse recusa-se a batiza-lo afirmando: “eu é que preciso ser batizado por ti, e tu vens a mim?” (Mt 3: 14b). Essa reação se deu, provavelmente, por dois motivos básicos: (1) João reconhecia que Jesus não tinha do que se arrepender, não tinha que se converter, voltando-se para Deus, pois já vivia em comunhão plena com o Pai; (2) o Batista também compreende que seria justamente Jesus aquele que realizaria o batismo com o Espírito Santo, o qual o seu batismo com água simbolizava. Fica, portanto, evidente a extrema necessidade de se mencionar o ministério batista de João e identifica-lo como uma tipificação do batismo pleno que Jesus realizaria e a igreja experimentaria posteriormente no pentecostes.
Diante dos motivos expostos, torna-se claro para nós que de fato era importante e necessária a inclusão das tradições acerca do ministério e pregação de João Batista no processo de redação dos evangelhos. Isso porque a partir desses relatos a figura de Jesus seria melhor identificada e compreendida pela comunidade cristã primitiva. Ficaria mais fácil reconhece-lo como messias, pois seu caminho havia sido preparado pelo mensageiro que lhe precedera, sendo esse mensageiro bastante conhecido tanto pelos convertidos quanto por aqueles que os apóstolos ainda almejavam alcançar com seu kerygma; clarearia a mente das pessoas para a figura de Jesus quanto ao agente inaugurador do reino de Deus na terra, pois o segundo Elias já havia vindo antes dele; e também, a partir do seu ministério batismal, explicaria melhor a ação do Cristo em Batizar os arrependidos com o Espírito Santo oferecendo, assim, o perdão gracioso de Deus.

Pastor Emanuel Uchôa (Maninho).

[1] Par. Usarei sempre esta abreviatura com o sentido de paralelos nos outros evangelhos sinóticos.
[2] Perceba a denominação que o próprio Marcos dá a sua obra em (1: 1): “a boa notícia de Jesus Cristo o filho de Deus”.
[3] Antigo Testamento.
[4] Ou reino dos céus, segundo Mateus. O Fato de essas expressões distintas aparecerem em relatos dos mesmos fatos nos força a aceitar que as mesmas se tratam de sinônimos.

Um comentário:

  1. Escrevi esse texto, principalmente, para ajudar os meus alunos de Teologia do Novo Testamento I. É assunto de prova. Um forte abraço.

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